terça-feira, 23 de setembro de 2008

Texto-fonte - encontro 5

A literatura alimenta a alma. É um modo de conhecer outras realidades e culturas, um mundo inventado pela ficção. Ela nos conduz ao conhecimento de nós mesmos e dos outros. Um escritor inventa uma biografia emocional com um recorte histórico.
Miton Hatoum
RELATO DE UM CERTO ORIENTE

Romance escrito pelo amazonense descendente de árabes, Milton Hatoum Lançado em 1989 pela Companhia das Letras. Conta a história de uma família árabe que vivia em Manaus, abrangendo um período de 20 anos (1954 a 1974). O relato é feito por cinco narradores em forma de cartas, lembranças de depoimentos dados aos narradores e outros recursos. Todos tentam reconstituir a história da família comandada por Emilie, uma libanesa de formação católica e francesa.
Os relatos de uma filha adotada (sem nome), do filho mais velho de Emilie, Hakim, do amigo fotógrafo alemão Gustave Donner, do marido de Emilie (sem nome) e da amiga Hindie Conceição recompõem a trágica historia de Emilie.
A protagonista veio para Manaus com família (pais e irmãos) e casou-se com um libanês muçulmano. O casal conviveu sem conflitos religiosos e sobreviveu do comércio de tecidos e objetos decorativos (a loja Parisiense). O negócio prosperou e a família, que inicialmente habitava na loja mudou para um sobrado.
Era Emilie quem detinha o poder na família. Teve quatro filhos , três homens e uma mulher. Em sua casa, além dos quatro filhos, habitavam os agregados – empregadas e filhos adotivos (provavelmente filhos extraconjugais do marido ).
Uma das primeiras tragédias da vida de Emilie foi a gravidez da filha, Samara Délia, na adolescência. Samara é condenada pelos preceitos religiosos do pai. A mãe a protege, impondo-lhe a clausura e castidade para o resto da vida.. Embora tenha sido perdoada pelo pai, após o nascimento da neta, Samara não é perdoada pelos irmãos caçulas. A filha, Soraya Ângela nasce surdo-muda e é atropelada aos seis anos. A partir deste episódio, começam as brigas e o inicio da decadência da vida do clã, com a morte do patriarca e dispersão dos irmãos.
O tempo do romance não é cronológico. A ação se desencadeia a partir da volta da filha adotada à casa da infância. Ela tenta reconstituir as memórias de 20 anos de afastamento. A narradora não conhece toda a história, por isto lança mão dos relatos de parentes e amigos. A história toda só é conhecida lendo os relatos atentamente.
No trecho que vamos ler, o relato é uma lembrança de Hakim. Apresenta a relação da família com as agregadas. Observe como o filho vai recompondo a personalidade da mãe. Observe a atitude de Hakim no relato.

...devo dizer que as lavadeiras e empregadas da casa não recebiam um tostão para trabalhar, procedimento corriqueiro aqui no norte. Mas a generosidade revela-se ou esconde-se no trato com o Outro, na aceitação ou recusa do Outro. Emilie sempre resmungava porque Anastácia comia “como uma anta” e abusava da paciência dela nos fins de semana em que a lavadeira chegava acompanhada por um séqüito de afilhados e sobrinhos. Aos mais encorpados, com mais de seis anos, Emilie arranjava uma ocupação qualquer: limpar as janelas, os lustres e espelhos venezianos, dar de comer aos animais, tosquear e escovar os pelos dos carneiros e catar as folhas que cobriam o quintal. Eu presenciava tudo calado, moído de dor na consciência, ao perceber que os fâmulos não comiam a mesma comida da família, e escondiam-se nas edículas ao lado dos galinheiros, nas horas da refeição. A humilhação os transtornava até quando levavam a colher de latão á boca. Além disso, meus irmãos abusavam como podiam das empregadas, que às vezes entravam num dia e saiam no outro, marcadas pela violência física e moral. A única que durou foi Anastácia Socorro, porque suportava tudo e fisicamente era pouco atraente. Quantas vezes ela ouvia, resignada, as agressões de uns e de outros, só pelo fato de reclamar, entre murmúrios, que não tinha paciência para preparar o café da manhã cada vez que alguém acordava, já no meio do dia. Vozes ríspidas, injurias e bofetadas também participavam deste teatro cruel no interior do sobrado. Lembro de uma cena que me deixou constrangido e apressou a minha decisão de partir, e assim venerar Emilie de longe.
Estava lendo no quarto quando escutei um alvoroço na escada: gritos, choro, convulsões. Corri para ver o que acontecia, e vi um dos meus irmãos arrastando uma das nossas ex-empregadas com um bebê entre os braços. Emilie surgiu de não sei onde, apartando um do outro, e tentando acalmá-los. Ela acompanhou a mulher até o portão e, ao despedir-se dela, cochichou algo a seu ouvido. A mulher levou a criança à Parisiense e contou coisas a meu pai. Foi uma das poucas vezes que o vi cego de ódio, os olhos incendiados de fúria. Eu estava de pé, ao lado da janela da copa, olhando ora para a gravura de um livro de viagens, ora para uma abóbada de folhas cinzentas movimentando-se no quintal, quando o pai irrompeu na casa; fiquei estatelado ao divisar seu corpo alto e um pouco curvado surgir no vão da porta; levava enroscado no punho o cinturão, tal uma serpente negra e delgada; a sua maneira de subir a escada era inconfundível: dava passadas espaçosas, calcando o pé no degrau, e a mão esquerda roçava o corrimão: o atrito da pele com a madeira emitia, em breves intervalos, ruídos agudos, uma espécie de silvado: escutei com temor o corre-corre, o salve-se-quem-puder; e escutei também, pela primeira vez nos seus acessos de fúria, uma frase em português: gritou, entre pontapés e murros na porta, que um filho seu não pode escarrar como um animal dentro do corpo de uma mulher. Depois ele desceu e entrou na cozinha à procura de Emilie; o livro tremia em minhas mãos, e a gravura a bico de pena não era mais que uma teia informe de finos rabiscos; procurei Sálua no quintal, mas não a vi. Também não tive ímpeto de me afastar dali: o medo deixara-me sem ação e sozinho diante de um pai encolerizado. O bate-boca com Emilie foi tempestuoso e breve; que não era a primeira mulher que aparecia na Parisiense com o filho no colo, dizendo-lhe “esta criança é seu neto, filho do seu filho”; que não atravessara oceanos para nutrir os frutos de prazeres fortuitos de seres parasitas; que naquela casa os homens confundiam sexo com instinto e, o que era gravíssimo, haviam esquecido o nome de Deus.
- Deus, contra-atacou Emilie – Tu achas que as caboclas olham para o céu e pensam em Deus ? São umas sirigaitas, umas espevitadas que se esfregam no mato com qualquer um e correm aqui para mendigar leite e uns trocados.

O velho interrompeu subitamente a discussão e saiu sisudo, decepcionado antes com Emilie que com meus irmãos. Era inútil censurá-los ou repreendê-los Emilie colocava-se sempre ao lado deles: eram pérolas que flutuavam entre o céu e a terra, sempre visíveis e reluzentes aos seus olhos, e ao alcance de suas mãos.
Essa convivência de Emilie com os filhos me revoltava, e fazia com que às vezes me distanciasse dela, mesmo sabendo que eu também era idolatrado. Tornava-me um filho arredio, por não ser um estraga-albarda, por não ser vitima ou agressor, por rechaçar a estupidez, a brutalidade no trato com os outros. No meu intimo, creio que deixei a família e a cidade também por não suportar a convivência estúpida com os serviçais. Lembro Dorner dizer que o privilégio aqui no norte não decorre apenas da posse de riquezas.
- Aqui reina uma forma estranha de escravidão – opinava Dorner. – A humilhação e a ameaça são o açoite; a comida e a integração ilusória à família do senhor são as correntes e golilhas.
Havia alguma verdade nesta sentença. Eu notava um esforço da parte de Emilie para manter acesa a chama de uma relação cordial com Anastácia Socorro. As vezes bordavam e costuravam juntas, na sala; e ambas conversavam sobre um passado e lugar distantes, e essas conversas atraiam minha atenção. Permanecia horas ao lado das duas mulheres, magnetizado pelo desenho dourado gravado no corpo vítreo do narguilé, nas contas de cor carmesim que formavam volutas ou caracóis semi-imersos no liquido nacarado, e no bico de madeira que terminava num orifício delicado, como se fossem lábios preparados para um beijo. Mirando e admirando aquele objeto adormecido durante o dia, escutava as vozes, de variada entonação, a evocar temas tão distintos que as aproximavam. Anastacia impressionava-se com a parreira sobre o pátio pequeno, o telhado de folhas, suspenso, de onde brotavam cachos de uvas minúsculas, quase brancas e transparentes, e que nunca cresciam; ela fazia careta quando degustava as frutinhas azedas, sem entender a origem dos cachos enormes de graúdas moscatéis que entupiam a geladeira, o pomar das delicias, junto com as maçãs, peras e figos que meu pai trazia do sul, bem como as caixas de raha com amêndoas, os saquinhos de miski, as latas de tâmaras e de “tambac”, o tabaco persa para o narguilé. As frutas e guloseimas eram proibidas às empregadas, e , cada vez que na minha presença Emilie flagrava Anastácia engolindo às pressas uma tâmara com caroço, ou mastigando um bombom de goma, eu me interpunha entre ambas e mentia à minha mãe, dizendo-lhe: fui eu que lhe ofereci o que sobrou da caixa de tâmaras que comi; assim, evitava um escândalo, uma punição ou uma advertência, alem de deixar Emilie reconfortada, radiante de alegria pois para fazê-la feliz bastava que um filho devorasse quantidades imensas de alimentos, como se o conceito de felicidade estivesse muito próximo ao ato de mastigar e ingerir sem fim.
A lavadeira me agradecia perfumando minhas roupas; depois de esfregá-las e enxaguá-las, ela salpicava seiva de alfazema nas camisas, lenços e meias, e, quando eu punha as mãos nos bolsos das calças, encontrava as ervas de cheiro: o benjoim e a canela. Um odor de mistura de essências me acompanhava nos passeios pela cidade e desprendia-se do guarda-roupa aberto durante a noite, como se ali, fumegando em algum canto escuro, existisse um incenso invisível.
O odor não estava ausente da conversa entre as duas mulheres. O aroma das frutas do “sul” vaporava, se colocadas ao lado do cupuaçu ou da graviola, frutas que, segundo Emilie, exalavam um odor durante o dia, e um outro, mais intenso, mais doce, durante a noite. “São frutas para saciar o olfato, não a fome”, proferia Emilie. “Só os figos da minha infância me deixavam estonteada desse jeito.” O aroma dos figos era a ponta de um novelo de historias narradas por minha mãe. Ela falava das proezas dos homens das aldeias, que no crepúsculo do outono remexiam com as mãos as folhas amontoadas nos caminhos que seriam cobertos pela neve, e com o indicador hirsuto da mãos direita procuravam os escorpiões para instiga-los, sem temer o aguilhão da cauda que penetrava no figo ofertado pela outra mão. Ela evocava também os passeios entre as ruínas romanas, os templos religiosos erigidos em séculos distintos, as brincadeiras no lombo dos animais e as caminhadas através de extensas cavernas que rasgavam as montanhas de neve, ate alcançar os conventos debruçados sobre os abismos.”Mas tinha um outro caminho, ao ar livre”, dizia emocionada. Era uma escada construída pela natureza: pedras arredondadas pela neve escalonavam as montanhas e te conduzem quase sempre a um convento ou monastério. Lá do alto, a terra , os rios e o mar azulado desaparecem: a paisagem do mundo se restringe á floresta de cedros negros e ao rio sagrado que nasce ao pé de montanhas. Além dos muros que circundam os edifícios suntuosos e solenes, uma outra paisagem surge como um milagre: córregos ao meio de bosques, videiras, oliveiras e figueiras que se alastram não muito longe do claustro, da igreja e das celas onde os solitários, nutridos pela religião, alçam o vôo rumo ao céu como as asas de uma montanha.
Impassível, com o olhar vidrado no rosto de Emilie, Anastacia aproveitava uma pausa da voz da patroa, empinava o corpo e indagava: como é o mar? O que é uma ruína? Onde fica Balbek ? As vezes Emilie franzia a testa e me cutucava, querendo que eu elucidasse certas duvidas. É curioso, pois sem se dar conta, tua avó deixava escapar frases inteiras em árabe, e é provável que nesses momentos ela estivesse muito longe de mim, de Anastácia, do sobrado e de Manaus. Eu deixava de contemplar os arabescos do narguilé para ponderar sobre isso e aquilo, e tentava dar outro rumo ao assunto, uma reviravolta no tempo e no espaço, passar do Mediterâneo ao Amazonas, da neve ao mormaço, da montanha à planície. E, antes que Anastácia começasse a falar, Emilie largava as agulhas e os panos, e ordenava a mulher a preparar um café com borra e servi-lo em xícaras de porcelana chinesa, tão pequenas que o primeiro gole parecia o ultimo. Alguma coisa imprecisa ou misteriosa na fala de Anastácia hipnotizava minha mãe Emilie, ao contrario de meu pai, de Dorner e dos nossos vizinhos, não tinha vivido no interior do Amazonas. Ela, como eu, jamais atravessara o rio. Manaus era o seu mundo visível. O outro, latejava na sua memória. Imantada por uma voz melodiosa, quase encantada,Emilie maravilhava-se com a descrição da trepadeira que espanta a inveja, das folhas malhadas de um tajá que reproduz a fortuna de um homem, das receitas de curandeiros que vêem em certas ervas da floresta o enigma das doenças mais terriveis, com as infusões de coloração sanguinea aconselhadas para aliviar trinta e seis dores do corpo humano. “E existem ervas que não curam nada”, revelava a lavadeira, “mas assanham a mente da gente. Basta tomar um gole de liquido fervendo para que o cristão sonhe uma única noite muitas vidas diferentes.”
Esse relato poderia ser de duvidosa veracidade para outras pessoas, não para Emilie. No jardim tu ainda encontras os tajás e as trepadeiras, separadas das plantas ornamentais. Emilie plantou as mudas naquele tempo e, aconselhada por Anastácia, preparou um adubo com esterco de galinha e carvão em pó para ser misturado à terra, de sete em sete dias durante sete meses. O resultado é a espessa muralha verde musgo que cerca a fonte, e o matagal de tajás vizinho ao galinheiro. Lembro que ali existiam ninhos de cobra, e muitos galináceos pereceram, vitimas dos ofídios. Emilie deu pouca importância ao fato. “Prefiro conviver com cobras a ter que suportar uma ponta de inveja desse ou daquele”. Costumava dizer.
Anastácia falava horas a fio, sempre gesticulando, tentando imitar com os dedos, com as mãos, com o corpo, o movimento de um animal, o bote de um felino, a forma de um peixe no ar á procura de alimentos, o vôo melindroso de uma ave. Hoje, ao pensar naquele turbilhão de palavras que povoavam tardes inteiras, constato que Anastácia, através da voz que evocava vivencia e imaginação, procurava um repouso, uma trégua ao árduo trabalho a que se dedicava. Ao contar historias, sua vida parava para respirar: e aquela voz que trazia para dentro do sobrado, para dentro de mim e de Emilie, visões de um mundo misterioso: não exatamente o da floresta, mas o do imaginário de uma mulher que falava para se poupar, que inventava para tentar escapar ao esforço físico, como se a fala permitisse a suspensão momentânea do martírio. Emilie deixava-a falar, mas por vezes seu rosto interrogava o significado de um termo qualquer de origem indígena, ou de uma expressão não utilizada na cidade, e que pertencia à vida da lavadeira, a um tempo remotíssimo, a um lugar esquecido á margem de um rio, e que desconhecíamos Naqueles momentos de duvida ou incompreensão, de nada adiantava o olhar perplexo de Emilie voltado para mim: permanecíamos, os três, calados, resignados a suportar o peso do silencio, atribuído aos “truques da língua brasileira”, como proferia minha mãe. Aquele silêncio insinuava tanta coisa, e nos incomodava tanto...Como se para revelar algo fosse necessário silenciar. Para Emilie, talvez fosem momentos de impasse, de aguda impaciência diante da permanência da duvida. Mas era Anastácia quem rompia o silencio: o nome de um pássaro, ate então misterioso e invisível, ela passava a descreve-lo em minúcias: as remiges vermelhas, o corpo azulado, quase negro, e o bico entreaberto a emitir um canto que ela imitava como poucos que têm o dom de imitar a melodia da natureza. A descrição surtia o efeito de um dicionário aberto na pagina luminosa, de onde se fisga a palavra-chave; e como sentido a surgir da forma, o pássaro emergia da redoma escura de uma árvore e lentamente delineava-se diante de nossos olhos.

(Relato de um Certo Oriente, págs. 85-92)

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