domingo, 24 de maio de 2009

MICHIKO

Enquanto colhia café, Michiko observava suas mãos calejadas e mal pagas. Já estava muito longe do sonho primeiro, da riqueza fácil que encontraria no Brasil. Seus pais, já velhos e cansados, mal conseguiam trabalhar metade do dia. Dos seus quatro irmãos, só restavam dois: Yuichi e Keiko. Os dias passavam e ela nunca encontrava uma saída para tal destino. O quanto sonhara em voltar ao Japão, ou ao menos dar a chance de seus pais voltarem. Perguntava-se sobre os tios que vira duas ou três vezes na vida, estariam vivos?

- Michiko! Michiko! Onde está?
- O que aconteceu, Keiko?
- Nosso pai... Nosso pai está morrendo!
- Morrendo?

Saíram ambas correndo numa espantosa velocidade. O coração de Michiko saltava no peito, dezenas de pensamentos inundavam sua mente, o que restava de todos os sonhos partilhados estava prestes a transformar-se em pó.

Lembrou-se do dia em que seu pai, assustado, carregou-lhe no colo após ter machucado a mão esquerda. Michiko não tinha mais que seis anos, sua família havia acabado de desembarcar no Brasil e ninguém sabia ao certo o que estava para lhes acontecer.

- Sai daí Michiko!

O barulho foi aumentando, aumentando. A mulher ficou presa no chão. Sua mente esvaziou-se, nada mais ouvia nem via. Chegara ao ponto final do sonho de voltar ao Japão. Voltar. Voltar...

Abriu os olhos lentamente, sua vista estava embaçada mas aos poucos voltava a definir os objetos. Quando estava prestes a levantar a cabeça ficou paralisada de susto: percebera, que se encontrava na antiga casa no Japão. Encantou-se ao ver os móveis, o lar simples no qual residira nos primeiros anos de vida. Por mais que de nada daquilo recordasse com clareza, mergulhou nas mais profundas e tenras memórias jamais jogadas fora.

- Ainda! Veja, ela acordou!
- Não grite assim Keiko!

Michiko sentiu os olhos marejando. Suas duas irmãs, Ainda e Keiko, ainda crianças e ao alcance das mãos. Ainda era a mais velha e falecera por causa de uma forte gripe que a derrubara por semanas. Era ainda muito jovem, deixara o marido e a filha para trás.

- Você não fala? Será que está passando mal?
- Está tudo bem agora.
- De onde veio? Nunca te vi aqui por perto.
- Não faça tantas perguntas, Keiko! Deixe-a descansar.
- Já me sinto melhor, só me incomoda o fato de não saber ao certo como cheguei até aqui.
- Descanse um pouco, quem sabe você se lembre. Vou cozinhar algo para comermos.
- Onde estão seus pais?
- Trabalhando, acho. Nosso irmão Yuichi deve estar com o papai, já Michiko...
- A Michiko não consegue largar da mamãe... Ela bem que podia ficar aqui conosco.
- Michiko é nossa irmã mais nova. Chora o dia todo sem a mamãe aqui.

A mulher sorria a cada detalhe que s irmãs relembravam. Memórias de um passado sagrado que os duros dias de trabalho nunca deram tempo de revirar. Michiko cozinhou, cantou, conversou, brincou e riu com Ainda e Keiko, mas em nenhum momento contou quem era: temia quebrar o encanto.

Os pais chegam, bem como Yuichi e a pequena Michiko. Ao defrontar-se tão de repente com sua própria pessoa de apenas quatro anos de idade, deu-se conta de que havia voltado no tempo. Em nenhum outro momento tal pensamento havia ficado tão claro em sua mente.

Ficou um tempo em silêncio, sequer respondia as perguntas que a família fazia. Estava encantada com a beleza daquele casal ainda jovem, seus queridos pais. Yuichi, mais velho que Keiko, já tinha um rosto cansado, mas também bastante esperto.

- Ela estava conversando conosco tão animadamente até agora pouco!
- Que estranho... Será que ela está passando mal?
- Ela disse o nome pelo menos?
- Fu... Meu nome é Michiko.
- Mi... chiko? Qual o seu sobrenome?
- Fukuda... Michiko.

Todos a olharam longamente. A pequena Michiko, depois de um tempo caminhou até a mulher e a abraçou com toda a força que possuía.

- Seu nome é igual ao meu!
- É, isso mesmo. Nossos nomes são iguais.
- Acho que sim, mas não sei dizer como consegui chegar aqui.
- Com quantos anos está agora?
- Trinta e cinco. Estamos todos até hoje morando no Brasil.
- Não conseguimos juntar dinheiro algum?
- Não. Nós todos continuamos trabalhando como loucos para que ao menos os meus filhos e sobrinhos possam estudar tranqüilos.
- Mas então é melhor não sairmos do Japão.
- Não temos mais saída, já está tudo acertado. Nossas últimas economias já foram gastas com a viagem.
- Isso quer dizer que... São nossos últimos dias no Japão sem esperança alguma de voltar?
- Pelo menos não nos próximos trinta anos.
- Michiko, você sabe como voltar para o seu tempo?
- Não. Tudo que me lembro é que estava prestes a morrer quando fui trazida para cá.
- Se não descobrir como voltar até a próxima semana, não quer viajar conosco até o Brasil? Não posso te deixar para trás, afinal é minha filha.

Michiko não conseguiu dormir, ficava pensando se gostaria de voltar ao seu tempo, já que estava vivendo grande felicidade ao lado dos pais e seu passado. A todo instante cheiros, sabores e objetos refrescavam mais suas lembranças, fazendo com que desejasse uma pausa no tempo. Também pensava nas pessoas que havia deixado para trás no Brasil, os três filhos, os irmãos e pais. Como estariam agora? Será que ela morreu e o espírito foi transportado para o passado como forma de atender ao seu último pedido? Atormentada pelos pensamentos, Michiko decide levantar e ir até um templo.

- Finalmente você chegou Michiko.
- Como sabe meu nome?
- Não é qualquer um que consegue realizar tal feito.
- Então já sabe o que me aconteceu.
- Quando acordei essa manhã sabia que viria. O mais interessante é que parou exatamente aonde desejava. Isso é fantástico.
- Como cheguei aqui?
- Não faça tantas perguntas, primeiro olhe o que há em seus bolsos.
- São... Pepitas de ouro!
- E o que você carregava antes consigo?
- Era café!
- Todo o café que você trouxe na sua viagem transformou-se em ouro.
- A bolsa...
- Você saiu tão apressada para ver seu pai que nem deixou a bolsa na qual colocava os grãos de café recém colhidos. Há uma fortuna naquela casa agora, quantia suficiente para que sua família não precise mais voltar ao Brasil.
- Está tudo resolvido então!
- Está? Já perguntou o que aconteceu no seu tempo quando você veio até aqui?
- O que aconteceu?
- No instante em que você saltou no tempo, tudo ficou parado. Está até agora assim, só aguardando a sua decisão.
- Então existe uma maneira de voltar?
- Não exatamente. Tudo o que sei é que tem que decidir se dará ou não todo o ouro que trouxe para a sua família. Infelizmente não poderei dizer ao certo o que acontecerá. Pode ser que, mesmo que consiga mudar, toda a história da sua família tenha mudado, uma vez que você atravessou a barreira do tempo. O único fato no qual você pode interferir diretamente é na ida ou não da sua família ao Brasil.

A mulher decidiu não contar para ninguém sobre a conversa com o monge nem sobre o ouro que carregava consigo. Apesar de questionada pelos familiares tentava desconversar e aproveitava para contar qualquer coisa maravilhosa sobre a terra distante. Michiko passou seis dias maravilhosos ao lado das pessoas que mais amava no mundo e aos poucos foi esquecendo a vida no Brasil. Foi apagando filhos, marido, tristeza e alegrias de sua memória, restando apenas o essencial em sua alma: o desejo de fazer com que sua família fosse feliz. A decisão já estava tomada. Contou sobre o ouro que tinha consigo e pediu para que não viajassem ao Brasil. Chorando muito, Michiko se despediu de sua família e dirigiu-se ao templo.

- Sabe bem o que está fazendo?
- Sei. Nada será como antes mesmo que eu queira, então é melhor que fiquemos todos aqui no Japão.
- Sua vida inteira mudará, não tem medo do que pode acontecer?
- Não sinto mais medo de nada. Só quero a felicidade para a minha família.
- Como pode afirmar com tanta certeza de que ficar no Japão será a garantia da felicidade de todos vocês?
- Todos sofremos muito naquele lugar, isso ficou claro para mim. Se posso mudar o curso do destino, prefiro que fiquemos aqui.
- Acontecerão coisas que você não poderá controlar. A única chance que você tem de mudar as coisas é agora.
- Tem certeza de que é minha única chance?
- Não, mas você deve se portar como se fosse. Michiko, as pessoas não são marionetes que você pode controlar como quiser.
- Se eu saltei o tempo uma vez, certamente conseguirei de novo.
- Mesmo que você mude o curso das coisas, ainda sim existe algo destinado para cada um de nós e não há como escapar disso. A partir do momento que você ultrapassar os portões desse templo, irá saltar novamente para o seu tempo. Não sou capaz de precisar onde você estará, mas nunca se esqueça que será um caminho sem volta.

Convicta da decisão, Michiko caminha lentamente em direção ao portão. Seu coração estava embriagado pela saudade da família e lembranças confusas. Ao olhar para fora, começou a notar que a paisagem ia mudando aos poucos e teve um leve receio de continuar a caminhada. Quando ameaçou diminuir a velocidade dos passos foi sugada para fora do templo com tal força que desmaiou.

Ao acordar notou que estava rodeada de lindas mulheres, todas maquiadas e com cabelos arrumados. Levantou apressadamente, correu até um espelho e percebeu que o rosto estava pintado como o de uma gueixa. Lembrou que, ainda pequena, fora vendida pelos pais em troca de uma bolsa cheia de ouro.

Milena Silva (proposta de criação de conto fantástico)

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